Simetria, Anti-simetria e Quebra de Simetria II
Na coluna anterior, constatamos uma inevitável quebra de simetria: o 0 não pode ter inverso multiplicativo, embora seu inverso aditivo, ou seja, seu oposto, seja ele mesmo. Em seguida, nos deparamos com uma pergunta fundamental, natural e lógica: qual é a capacidade do anel das frações áQ, +, 0, ×, 1, distributivañ resolver equações, já que sua representação geométrica é simétrica e preencheu muito melhor a reta?
Do importante ponto de vista geométrico, as frações ocupam simetricamente a reta Euclidiana, mas como Pitágoras percebeu, certas hipotenusas têm comprimento que deveriam ser transportados com o compasso para um ponto da reta Euclidiana.
Pitágoras precisou resolver a equação x2 = 2! Um triângulo retângulo de catetos medindo 1 tem hipotenusa ¸ que não é fração, isto é, não existem inteiros p e q tais que p/q = ¸. Com o compasso mental, Pitágoras provavelmente imaginou que algum ponto da reta Euclidiana estaria situado a uma distância ¸ de um ponto O.
Entram em cena, pois, uma quantidade infinita de números irracionais, isto é, que não são frações, mas ainda podem ser acomodados na reta Euclidiana. Georg Cantor nos mostrou, por volta de 1.895, que a quantidade infinita dos irracionais é muito maior do que a quantidade infinita das frações. Para quem tiver interesse nisso, já estudamos em colunas anteriores a causa da existência de infinitos tipos de infinito.
Voltando aos números reais, como vamos concebê-los? Por meio da representação decimal infinita, fazemos a seguinte distinção: aqueles cuja expansão decimal não é periódica (os irracionais) e aqueles cuja expansão decimal é periódica (as frações ou os racionais). A nova criatura se chama “conjunto dos números reais”, ou, simplesmente, R.
Por exemplo, 1 = 1,00000...0000... . Devemos apenas tomar um cuidado especial: também podemos escrever 1 = 0,99999...9999... ! A explicação é simples: o número da direita não é menor do que 1 porque ele tem infinitos 9´s e, portanto, supera qualquer um que seja menor do que 1. Por outro lado, ele não é maior do que 1, evidentemente. Logo, ele só pode ser igual a 1. Para evitar ambigüidades na representação infinita de casas decimais, convencionaremos que infinitos zeros consecutivos serão substituídos por infinitos 9´s diminuindo uma unidade na casa anterior ao primeiro zero que se repete infinitamente. Porém, para efetuar adições e multiplicações, poderemos utilizar uma ou outra representação.
Por exemplo, 1,39000...000... poderá ser trocado por 1,38999...999...! Dessa forma, todo número real passa a ter uma única representação decimal infinita. O número 2 tem a representação 1,999....999..., o número 2,1 tem a representação 2,0999...999..., e assim por diante.
Não podemos nos esquecer que certos axiomas lógicos são necessários para nossa investigação. Por exemplo, acabamos de usar o axioma de que se a não é menor do que b e também não é maior do que b, então a = b.
Essa elegante caracterização dos números reais por meio de infinitas casas decimais nos faz definitivamente comprometidos com o “infinito”. Não há como nos livrar dele e, aliás, por enquanto, por que deveríamos? Galileu se assustou (como muitos outros) com o infinito matemático, e nos recomendou que o evitássemos, mas isso são águas passadas.
Chegamos, então, ao patamar mental dos números reais: áR, +, 0, ×, 1, distributivañ. Como é que vamos adicionar dois números com infinitas casas decimais, digamos, ¸ + ¹?
Não podemos dizer que simplesmente adicionamos as correspondentes casas decimais. Há um problema: não existe a última casa de ¸ e de ¹, por exemplo.
Imaginemos que, embora ela não exista, ainda assim o número irracional existe. Mas por quê? Bem, por hipótese!
Ainda temos que explicar como adicionaremos, ou multiplicaremos, dois números com infinitas casas decimais. Já sabemos fazer isso com as frações.
Por exemplo,
0,4999...999... + 0,333...333... = 0,5 + 1/3 = ½ + 1/3 = 3/6 + 2/6 = 5/6 = 0,8333...333... .
Entretanto, no caso de ¸ + ¹, a brincadeira é muito mais séria. Bem, façamos o seguinte: suponhamos que essa soma exista, isto é, que ela seja também um número real, e que tenha, portanto, também sua representação decimal infinita. Em qualquer cálculo que envolva esses números, todas as propriedades do anel das frações também valerão por hipótese, e pronto, vamos tocar o barco!
Se alguém ameaçar ficar para trás, podemos dizer o seguinte: na verdade, com muita força de vontade e paciência, poderíamos descobrir as primeiras casas decimais de ¸ + ¹. Por exemplo, como ¸ = 1,4... e ¹ = 2,2... , temos ¸ + ¹ = 3,... . Não podemos ainda dizer qual é a primeira casa depois da vírgula, mas certamente a casa decimal das unidades inteiras de ¸ + ¹ é 3. Para descobrirmos a próxima casa decimal, teríamos que saber qual é a segunda casa depois da vírgula de ¸ e de ¹. Não haveria nenhum problema nisso, apenas gastaríamos tempo e energia. Logo, não deixamos nenhum incrédulo para trás nesse jogo.
O jogo que continuaremos a jogar é tentar descobrir até onde a mente do Hoss pode ir com essas construções hipotéticas. A reta Euclidiana ficou mais bem preenchida com os irracionais. Na verdade, agora ela ficou completamente preenchida. A possibilidade de infinitas casas decimais para cada número real tampa qualquer buraco que pudesse haver na reta Euclidiana. A partir de agora, sempre imaginaremos a reta Euclidiana como algo contínuo, sem buracos. Em outras palavras, entre dois números reais, há um terceiro e, portanto, há infinitos, muito mais do que a quantidade de frações!
Como cada número racional ¹ 0 tem um inverso multiplicativo no anel das frações, dizemos que o anel é um corpo. O corpo das frações áQ, +, 0, ×, 1, distributivañ se estendeu ao corpo dos números reais áR, +, 0, ×, 1, distributivañ. O fato essencial foi o de que equações da forma xn = a, onde a é uma fração positiva, passaram a ter soluções irracionais da forma a1/n, isto é, raiz n-ésima de a. Assim como para o caso da raiz quadrada, qualquer raiz n-ésima de um número racional não negativo passa a existir, muitas vezes como um número irracional. As infinitas casas decimais de a1/n podem ser pacientemente descobertas por aproximações como se faz para ¸ = 1,414... .
Porém, não é possível usar essa estratégia para resolver a equação x2 = -1. Vamos precisar sair da reta Euclidiana para acomodar novos números que resolverão esse tipo de equação. Começamos com a hipótese de que exista um número i que satisfaça essa equação. Assim, i2 = -1. Como queremos preservar todas as propriedades do corpo dos números reais, teremos que admitir o oposto de i que é o -i, e todos os demais múltiplos de i da forma ai, onde a é um número real.
Entram em cena os números complexos como estratégia para solucionar as equações do tipo x2 = -a, sendo a um número real positivo.