Cuidado com contadores de estórias que espelham o contador (III)
— A. Mas está escrito também que:
“... , então seria matematicamente impossível a existência
de grandes coleções de partículas indistinguíveis.”
— P. Ufa, haja energia para tanta graça! Agora estou como você, exausto. Coragem, vamos continuar mais um pouco. Deve haver uma razão espetacular para essa afirmação, vejamos qual é ela:
“A matemática usual é fortemente inspirada nas experiências que temos no dia–a–dia,
inconsistentes com a aparente realidade do mundo de prótons e elétrons.”
Por falta de fôlego, vamos ignorar a tranqüilidade da afirmação da “aparente realidade do mundo de prótons e elétrons” e nos ater à afirmação sobre a Matemática e sua inspiração no dia–a–dia. Agora já é demais! Paciência tem limite. Quem são esses que “temos experiências no dia-a-dia inspirando a Matemática”? O que é “experiência no dia–a–dia”?
— A. Isso contraria frontalmente o que você prega em suas aulas de cálculo. Por exemplo, quando você afirma que sem a teoria pura de cálculo não tem como saber se o gráfico plotado na tela do computador é enganador. Quer dizer, o dia–a–dia (fazer gráficos no computador, por exemplo) é que tem que ser inspirado e guiado pela Matemática, e não o contrário!
— P. Bem, você já percebeu que eu arrisco meu emprego em toda santa (ou demoníaca) aula. Se o diretor da escola concordar com o artigo, ele terá que me despedir. Paciência. Mas a vida de um espécime na rede do Hoss é mesmo um constante perigo. Venho estudando Matemática e Física, talvez não de modo intenso e acadêmico, por longos 35 anos, e nunca experimentei no dia–a–dia sequer uma única experiência que inspirasse qualquer conceito matemático. (Insisto que está aberta a possibilidade de eu ser um mero biruta.) Ao contrário, absolutamente ao contrário, esse ingênuo e pobre mortal (biruta?) pensa há mais de três décadas que seu dia–a–dia é inspirado e iluminado pela Matemática e pela Física. O conceito mais importante da Matemática, o de infinito, por exemplo, sempre me inspirou e iluminou minha experiência com coleções “incontáveis” de objetos e com a parte “não observável do Universo”. Não sabemos direito se o Universo é “infinito”, ou se há infinitos “Universos”, nem sabemos exatamente quantas estrelas tem neles. A coleção de estrelas é uma coleção “incontável”, ela lembra a coleção de números possíveis obtidos intuitivamente em contagens. Imagine (você não pode experimentar isso!) todas as contagens possíveis de coisas por qualquer ser do Universo, então você precisará de todos os números naturais possíveis, isto é, você necessita, imediatamente, de um conjunto infinito de números naturais. Isso logo de saída em seu estudo de Matemática. Então, o que não posso “experimentar no dia-a-dia” é preenchido pela noção de “infinito”. Sem esses maravilhosos óculos da Matemática, não enxergaríamos absolutamente nada no dia-a-dia. Não foi Popper que me ensinou que a “teoria é prévia”? A Matemática é a teoria por excelência!
— A. Você está meio excitado.
— P. Não tem outro jeito. O conceito de classe de equivalência me inspira e ilumina minha experiência com as diversas formas de representar um número real. É desnecessário continuar dando exemplos nessa linha de raciocínio, mas não custa nada lembrar que minhas experiências com conceitos físicos são inspiradas e iluminadas pelos conceitos matemáticos, assim como várias experiências intelectuais (como taxa de variação instantânea) são difíceis de classificar como inspiradas fisicamente ou matematicamente, embora seja claro que não têm absolutamente nada a ver com experiências no dia-a-dia: não há nada no dia-a-dia que se pareça, nem remotamente, com a idéia de taxa instantânea de variação ou velocidade instantânea. Esse conceito físico-matemático é pura imaginação física-matemática com enormes benefícios para a espécie Hoss no seu trato com o dia-a-dia. Felizmente é assim que é!
— A. Nesse ponto acho que também sou biruta, me convenci disso em suas aulas sobre limites e derivadas.
— P. Justamente por serem pura especulação abstrata é que os conceitos matemáticos têm inúmeras aplicações em todas as áreas da ciência e do conhecimento humano. Como diz Michel Serres, é justamente por não ter compromisso com nenhuma situação particular, que a Matemática está disponível para ser aplicada, em princípio, em qualquer situação, a qualquer fenômeno. A característica abstrata da Matemática é justamente o que lhe dá tanto poder e tanta beleza. É cansativo ter que reafirmar isso periodicamente!
— A. Não se exalte muito. Você já passou dos cinqüenta. Pode fazer mal para o seu órgão cardíaco.
— P. Como dizia um professor de quem sinto muitas saudades, “Matemática é pura imaginação”. Quem sabe, agora digo eu, aquele meio por cento de diferença genômica entre o Hoss e o chimpanzé seja justamente a capacidade de abstrair, generalizar (ir à essência das coisas) e, com esses óculos, “enxergar o mundo”. Se não for assim, vamos nos esforçar para introduzir na evolução genética da espécie de Hoss essa característica. Estava feliz, antes de você vir me perguntar sobre esse artigo, pensando que a Matemática é útil, justamente, por ser abstrata, e, por isso mesmo, ser capaz de “iluminar o mundo”. Acho que continuo feliz por isso, mas agora infeliz por ver que isso está longe de ser óbvio não só para a maioria dos 6 bilhões de espécimes de Hoss, mas também para contadores de estória de excelentes revistas científicas.
— A. Atrapalhei seu sossego e equilíbrio emocional.
— P. Aposto um real como o russo Yuri Manin, grande matemático contemporâneo, não fez e nunca fará, afirmações análogas ou equivalentes a essas bombásticas, hilariantes e sem sentido que você me trouxe e eu me atrevi a analisar. Por exemplo, não consigo imaginar o Manin afirmando:
“Uma das principais lições da não-individualidade é atacar
o perigoso (apesar de não necessariamente indesejável) compromisso que
a matemática usual tem com a maneira como
os matemáticos percebem o chamado mundo real.”
Só posso dizer, por favor, socorro!!! Traga depressa meu remédio para pressão alta! Depois de 35 anos estudando Matemática, ainda não “percebí” o “mundo real”. O meu erro foi estudar um pouquinho de Teoria do Conhecimento e ficar com a impressão que o “mundo real” é meio complicado de ser “conhecido”. Mas alguns parecem não ter dúvida alguma sobre ele: devem ser espécimes de Hoss bem mais felizes, com pressão arterial 12 por 8 e, portanto, parabéns a eles (a minha deve estar 18 por 12).
— A. Mestre, muita calma nessa hora! Leve as coisas que acontecem na rede de Hoss na esportiva.
— P. Estou tentando, mas não é fácil. Veja essa:
“Nossa visão usual é a de que pessoas e objetos são indivíduos.
Cada pessoa, flor e número são únicos.
Apesar da idéia amplamente divulgada de que
a matemática lida com conceitos ou estruturas abstratas
e genéricas, seu vínculo com a “realidade” em que
o matemático vive nem sempre é questionado
com a devida propriedade.”
Eu pensava que a Matemática fosse uma criação de alguns espécimes de Hoss e, portanto, não tem compromisso com nada. Quem tem compromisso com alguma coisa são os poucos espécimes de Hoss que buscam o caminho da “razão” e encontram a Matemática, como Thales de Mileto e Euclides de Alexandria, ou Albert Einstein, por exemplo. Seriam também perigosos os compromissos de alguns indivíduos Hoss com as infinitas Matemáticas “não usuais”, como a Matemática Fuzzy, por exemplo?
Não é necessária essa idéia de “Matemática Usual”. Matemática é um certo modo de alguns indivíduos Hoss teorizar que inclui infinitas Lógicas e infinitas Teorias de Conjuntos, Categorias e Funtores. Por que, então encafifar com uma delas?
As infinitas Matemáticas possíveis são tão abstratas quanto a Matemática Clássica (Teoria dos Conjuntos de Zermelo-Fraenkel & Lógica Clássica & Categorias e Funtores) e têm vínculo apenas com si próprias, com suas estruturas intrínsecas e coerência interna, e nada a ver com a ficção ilusória chamada “realidade em que o matemático vive”. Ao contrário, são justamente as infinitas Matemáticas possíveis que fornecem a única chance racional de questionar qualquer invencionice desse tipo. Cabe uma advertência: cuidado com as estórias que espelham o contador.
Evidentemente, essa advertência vale, principalmente, para esse pobre mortal ingênuo, professor de cálculo prestes a ser demitido por birutice, perplexo, ávido leitor da Sciam.=
— A. Mestre, muita calma nessa hora difícil!