Aritmética nos inteiros de Gauss
A obra do matemático alemão Carl F. Gauss é universal. Gauss produziu com desenvoltura em todos os ramos da matemática. Fez, inclusive, importantes contribuições em Astronomia, desenvolvendo um método de cálculo de órbitas de corpos celestes a partir de um número reduzido de observações. Até hoje, esse método é utilizado para acompanhar as órbitas de satélites. Contudo, é notório o prazer que sentia pela investigação em Aritmética. A sua obra monumental “Disquisitiones Arithmeticae” lançou os fundamentos da moderna Teoria dos Números.
Em 1825, publicou um trabalho em que introduzia os números complexos da forma a + bi, onde a e b são números inteiros e i = (–1)1/2. Esse conjunto é indicado por Z[i] e é denominado Inteiros de Gauss ou conjunto dos Inteiros Gaussianos em homenagem ao seu criador.
Gauss investigava questões relacionadas à reciprocidade biquadrática, ou seja, relações entre números primos p e q, tal que o primo q fosse um resto biquadrático do primo p, x4
Essa generalização do conjunto dos números inteiros dá exemplos especiais de desenvolvimentos muito mais profundos que chamamos de Teoria dos Números Algébricos. Essa teoria é profunda e poderosa. Além do interesse e fascínio que exerce por suas próprias propriedades, fornece muitas aplicações à Teoria dos Números que permitem uma compreensão de vários fenômenos antes obscuros e misteriosos. Por exemplo, consideram-se irracionalidades algébricas muito mais gerais, ou seja, raízes de equações algébricas de todos os graus que estão além das irracionalidades quadráticas.
Vamos discutir algumas das propriedades aritméticas dos inteiros de Gauss. Primeiramente, observamos que Z[i] é um subconjunto de C, o conjunto dos números complexos. Sendo assim, consideremos o conjunto Z[i] munido das operações de adição e multiplicação herdadas de C. Isto é, se z1 = a + ib e z 2 = a + ib então
z 1 + z 2 = (a + c) + i(b + d)
e
z 1 . z 2 = (a + c) + i(b + d).
O elemento neutro da adição é 0 = 0 + 0i, o elemento neutro da multiplicação é 1 = 1 + 0i e finalmente –1 = –1 + 0i. Todas as outras propriedades, tais como associativa da adição e da multiplicação, comutativa da adição e multiplicação, distributiva, são herdadas de C. Observemos que para todo inteiro n temos a identificação n = n + 0i, ou ainda, n = n. Portanto, 0 = 0, ±1 = ±1, ±2 = ±2, ... .
As questões de divisibilidade se tornam complexas nesse conjunto. Observe que o número inteiro 5 é primo em Z. Contudo, em Z[i] temos
(1 + 2i).(1 – 2i) = 1 – 2i + 2i – 4i2 = 1 – 4(–1) = 5.
Uma vez que nem todo inteiro primo é primo gaussiano, naturalmente surgem algumas questões: Quais são os números primos desse anel? Existem infinitos primos gaussianos? Seria possível se decompor os inteiros gaussianos em fatores primos de modo único, a menos da ordem?
Para comentar essas questões, que envolvem a noção de divisibilidade em Z[i], precisamos definir o que vem a ser divisibilidade em Z[i].
Suponhamos que x e y sejam inteiros gaussianos distintos, onde y ¹ 0. Dizemos que y divide x, e indicamos por y çx, se existe um inteiro gaussiano w tal que x = wy. Por exemplo,
(1 + i) ç2, pois 2 = (1 + i)(1 – i)
e
(1 + i) ç(1 – i), pois 1 + i = i(1 – i).
Agora, observe que 1 + 2i não divide 1 – i. Caso contrário, teríamos 1 + 2i = (c + di)(1 – i) onde c e d pertencem a Z. Obtemos 1 + 2i = c + d + (d – c)i, ou seja, c + d = 1 e d – c = 2 igualando, respectivamente, a parte real e a parte imaginária. Somando-se as duas equações anteriores obtemos 2d = 3. Contudo, d é um número inteiro!
Será a definição de divisibilidade em Z[i] compatível com a definição de divisibilidade em Z? Queremos saber, por exemplo, se é possível 3 dividir 7 em Z[i]. A resposta não poderia ser mais significativa:
existe compatibilidade entre a definição de divisibilidade
dada para inteiros gaussianos em relação à definição dada para os inteiros.
De fato, suponhamos que x e y, y ¹ 0, são elementos de Z tal que y çx em Z[i]. Então existe w = c + di em Z[i] tal que x = wy, ou seja, x = (c + di)y = cy + dyi. Logo, x = cy e 0 = dy. Como y ¹ 0, 0 = dy implica que d = 0 e, assim, w = c é um número inteiro! Portanto, x = wy = cy. Concluímos que, se y çx em Z[i], então y çx em Z.
Sabemos que 1 e –1 dividem todos os números inteiros. Analogamente, demonstra-se que ± 1 e ± i dividem todos os inteiros gaussianos. Sendo assim, ± 1 e ± i são denominados de unidades dos inteiros gaussianos. Se w é uma unidade dos inteiros gaussianos e x e y são inteiros gaussianos tais que x = wy, então dizemos que x e y são elementos associados. Observe que, 1 + i e 1 – i são elementos associados, pois 1 + i = i (1 – i).
Agora estamos aptos a definir primos gaussianos: um inteiro gaussiano x é um primo gaussiano se os únicos divisores de x são seus associados e as unidades de Z[i]. Por exemplo, o inteiro 2 não é primo em Z[i], pois
i(1 – i)2 = i(1 – 2i + i2) = i(–2i) = –2i2 = 2.
Como observamos anteriormente existem muitas propriedades que os inteiros gaussianos e os inteiros possuem em comum. Sabemos por meio das colunas anteriores que existem infinitos inteiros primos da forma 4k + 3. Por sua vez, demonstra-se que todo inteiro primo da forma 4k + 3 é um primo gaussiano! Portanto, existem infinitos primos gaussianos. Demonstra-se que os primos gaussianos são precisamente:
O inteiro gaussiano 1+ i e seus associados; os inteiros primos da forma 4k + 3 e seus associados; e os números a ± bi, onde a2 + b2 é um inteiro primo da forma 4k +1,
e seus associados.
Observamos que os associados de um inteiro gaussiano x são obtidos multiplicando-se x por ± 1 ou ± i.
Se p = 3 então p = 3 = 4.0 + 3; logo o inteiro gaussiano 3 é um primo gaussiano. Se p = 5, então p = 5 = 4.1 + 1 implica que 2 + i e 2 – i e seus associados são primos gaussianos.
Como todo inteiro primo ou é da forma 4k + 1 ou da forma 4k + 3, concluímos que existem dois primos gaussianos correspondentes a cada inteiro primo da forma 4k + 1, e um primo gaussiano que correspondente a cada inteiro primo da forma 4k + 3. Sendo assim, todo primo gaussiano é fator de um único inteiro primo. Costumamos dizer que os primos da forma 4k + 3 permanecem primos em Z[i], que os primos da forma 4k + 1 se decompõem em Z[i], e que 2 = –i(1 + i) se ramifica em Z[i].
Observamos que até agora não possuímos elementos para comparar inteiros gaussianos por meio da conhecida relação de ordem “<”. Vamos assumir que essa definição possa ser estendida para os inteiros gaussianos. Sabemos que, para qualquer que seja a definição estendida, sempre teremos que 0 < 1. Como i ¹ 0, se supusermos i < 0, então necessariamente 0 < –i e, portanto, 0 < (–i)2 = –1, o que é falso! Por outro lado, se supusermos 0 < i, então 0 < i2 = –1, o que também é falso!
Para comparar inteiros gaussianos poderemos definir uma função norma com domínio neles que assuma valores nos naturais N. Portanto, definimos N de um inteiro gaussiano x = a + bi, por N(x) = N(a + bi) = a2 + b2. A norma exerce um papel importante, pois, como sabemos, as desigualdades são fundamentais no estudo das propriedades aritméticas e algébricas dos inteiros.
Em Z[i] está definida uma divisão com resto muito semelhante à divisão euclidiana definida nos inteiros:
Sejam x e y inteiros gaussianos, com y ¹ 0. Então existem inteiros gaussianos w e z
tais que: x = wy + z, com N(z) < N(w).
Assim, a divisão com resto em Z[i] é algorítmica. Esse fato permite calcular o máximo divisor comum de dois inteiros gaussianos não nulos.
Os inteiros satisfazem uma propriedade importantíssima em Teoria dos Números: a fatorização única, ou seja, todo número inteiro positivo se expressa de maneira única, a menos da ordem dos fatores, como produto de números primos. Os inteiros gaussianos também satisfazem essa importante propriedade aritmética, ou seja, admitem a decomposição em primos e essa decomposição é única a menos da ordem dos fatores.