A lei de reciprocidade quadrática e os inteiros de Gauss
Em 1825, o matemático alemão Carl F. Gauss publicou um trabalho em que introduzia os números complexos da forma m + ni, onde m e n são números inteiros e i = (–1)1/2, quando investigava questões relacionadas à reciprocidade biquadrática. As Leis de Reciprocidade representam um dos mais interessantes resultados da Teoria dos Números. Essas leis nasceram do Teorema da Reciprocidade Quadrática que foi demonstrado por Gauss e conjeturado anteriormente por Pierre de Fermat, Leonard Euler e Joseph Legendre. David Hilbert, e mais tarde André Weil, generalizaram essas leis e ainda não se tem total compreensão delas em situações mais gerais.
Provavelmente, a Lei de Reciprocidade Quadrática (LRQ) foi um dos primeiros resultados profundos da Teoria dos Números moderna. Originalmente, ela foi conjeturada independentemente por Euler e Legendre na primeira metade do Século XVIII. Porém, eles só obtiveram a demonstração para casos particulares. Em 1795, Gauss descobriu-a por si próprio, mas não sentia que poderia demonstrá-la, e em uma carta relatou que a demonstração o atormentou por um ano e consumiu os seus maiores esforços. Aos dezenove anos de idade, em 8 de Abril de 1796, Gauss deu a primeira demonstração da Lei de Reciprocidade Quadrática e durante sua vida encontrou outras demonstrações desse resultado.
Antes de enunciarmos esse resultado vamos recordar o conceito de congruência visto nas últimas colunas sobre a “Função Zeta de Riemann e a Internet”. Gauss introduziu o conceito de congruência no primeiro capítulo de sua obra “Disquisitiones Arithmeticae” publicada em 1801. Naquela oportunidade ele também introduziu a notação “≡” que tornou esse conceito uma técnica poderosa em Álgebra e Teoria dos Números. Vamos às definições.
Consideramos dois inteiros a, b e n um inteiro positivo. Se n divide a – b dizemos que
a é congruente a b modulo n, e escrevemos a ≡ b (mod n).
Por exemplo: 27 ≡ 2 (mod 5) , pois 5 divide 27 – 2 = 25, 7 ≡ 7 (mod 4) , pois 4 divide 7 – 7 = 0.
Portanto, a ≡ b (mod n) significa que n divide a – b; logo existe um inteiro k tal que a – b = kn pela definição de divisibilidade. Por exemplo, 37 ≡ 2 (mod 5) porque 37 – 2 = 35 = 7 • 5. Dados os inteiros a e n sabemos, pelo Algoritmo da Divisão, que existem inteiros q e r denominados, respectivamente, de quociente e resto tais que: a = qn + r, onde 0 ≤ r < n; logo a – r = qn, ou seja, n divide a – r. Portanto, pela definição de congruência a ≡ r (mod n). O resto r pode assumir qualquer valor entre 0 e n – 1, dessa maneira concluímos que todo inteiro a é congruente modulo n a exatamente um dos valores entre 0, 1, 2, ..., n – 1. O conjunto {0, 1, 2, ..., n –1} dos n inteiros que são os restos das divisões modulo n, é chamado de classe de resíduos módulo n. Se fixarmos n = 7, então a classe de resíduos módulo 7 possui exatamente 7 elementos, a saber: 0, 1, 2,..., 6. Portanto, qualquer que seja o inteiro ele é congruente a um único elemento da classe de resíduos modulo 7. Por exemplo, 20 é representado por 6 na classe de resíduos, pois 20 ≡ 6 (mod 7).
Devido às muitas propriedades semelhantes que congruências e igualdades satisfazem, Gauss escolheu o símbolo “≡” para o sinal de congruência. Observe que a ≡ a (mod n) e, se a ≡ b (mod n), então b ≡ a (mod n). As operações de adição, multiplicação e potenciação se comportam da seguinte maneira: se a ≡ b (mod n) e c ≡ d (mod n), então: a+ c ≡ b+ d (mod n), a • c ≡ b • d (mod n), ar ≡ br (mod n).
Euler se perguntava em que condições a congruência x2 ≡ q (mod p) admitia solução para os primos p e q dados. Quando essa congruência tem uma solução dizemos que q é um resíduo quadrático módulo p. Caso contrário, dizemos que q é um resíduo não quadrático módulo p. Portanto, os resíduos quadráticos módulo p são aqueles elementos do conjunto da classe de resíduos modulo p que são quadrados. Se fixarmos n = 7 então a classe de resíduos módulo 7 possui exatamente 7 elementos, a saber: 0, 1, 2,..., 6, e exatamente 3 elementos que são quadrados, a saber: 1 = 12, 4 = 22, 2 = 32, isto é, 32 = 9 ≡ 2 (mod 7). Portanto, o inteiro 2 é resíduo quadrático módulo 7. Entretanto, 5 é resíduo não quadrático módulo 7, pois nenhum dos elementos do conjunto {1, 2, 3, 4, 5, 6} satisfaz a equação x2 ≡ 5 (mod 7).
O interesse da Teoria dos Resíduos Quadráticos reside na seguinte questão: para quaisquer números primos ímpares p e q, existe relação entre a propriedade de p ser resíduo quadrático modulo q com a propriedade de q ser resíduo quadrático módulo p? Portanto, estamos discutindo a natureza da reciprocidade dos resíduos quadráticos.
Em 1640, Fermat enunciou o seguinte teorema, hoje conhecido como o pequeno Teorema de Fermat:
“Se p é um primo ímpar que não divide um inteiro a, então ap – 1 ≡ 1 (mod p).”
Como p é ímpar, segue-se que (p – 1)/2 é um inteiro e, então, temos que: a(p – 1)/2 ≡ 1 (mod p).
Atualmente, conhecido como Critério de Euler, esse foi o ponto de partida para que Euler investigasse uma demonstração da LRQ. Enunciemos o Critério de Euler:
“Sejam p um primo ímpar e a um inteiro, tais que p não divida a.
O número a é resto quadrático módulo p se, e somente se, a(p – 1)/2 ≡ 1 (mod p).”
Por exemplo, a = 3 é um resíduo não quadrático módulo p = 7, pois 33 = 27 ≡ -1 (mod 7).
Por outro lado, a = 3 é um resíduo quadrático módulo p = 11, pois 35 = 243 ≡ 1 (mod 11).
Entretanto, esse critério não é prático. Por exemplo, se desejamos decidir se o inteiro 17 é um resíduo quadrático módulo 1987, precisamos decidir se 17993 é congruente a 1 módulo 1987 (note que (1987 – 1)/2 = 993). Sendo assim, existe a necessidade de investigar se existe um método mais conveniente.
Euler se concentrou na situação em que ambos os inteiros p e q são números primos positivos, ímpares e distintos. Legendre tentou dar uma demonstração desse fato, em 1785, mas ele supunha um resultado cuja demonstração é muito mais profunda que a demonstração da LRQ, ou seja, supunha que certas progressões aritméticas continham infinitos números primos entre seus elementos.
Entretanto, Legendre introduziu o seguinte símbolo (a/p): (a/p) = 1, se q é um resíduo quadrático de p, e (a/p) = –1, caso contrário. Esse símbolo (a/p) satisfaz muitas propriedades interessantes. Por exemplo, se p é um primo ímpar e a, b são inteiros não divisíveis pelo primo p, então: o símbolo é multiplicativo, ou seja, ((ab)/p) = (a/p) (b/p); se a ≡ b (mod p), então (a/p) = (b/p).
Com esse símbolo (a/p), conhecido por símbolo de Legendre, a LRQ se expressa, convenientemente, da seguinte forma:
(q/p) (p/q) = (–1)[(p – 1) / 2].[ (q – 1) / 2].
A LRQ pode ser formulada de outras maneiras. Multiplicando-se a igualdade acima por (p/q), obtemos a igualdade
(q/p) = (–1)[(p – 1) / 2].[(q – 1) / 2](p/q),
pois (p/q) = ± 1. Vamos decidir se o inteiro 30 é um resíduo quadrático módulo 53 utilizando a LRQ. Observamos, primeiramente, que:
(15/53) = (3/53)(5/53).
(3/53) = (–1) [(3 – 1)/2].[ (53 – 1)/2] (53/3) = (53/3) = (2/3),
pois o resto da divisão de 53 por 3 é 2, isto é, 53 ≡ 2 (mod 3). Como 2 é resíduo não quadrático módulo 3, segue que (2/3) = –1. Pela LRQ, (5/53) = (–1) [(5 – 1)/2].[ (53 – 1)/2] (53/5) = (53/5) = (3/5), pois o resto da divisão de 53 por 5 é 3, isto é, 53 ≡ 3 (mod 5). Como 3 é resíduo não quadrático módulo 5, segue-se que (3/5) = –1. Portanto, (15/53) = (3/53)(5/53) = (–1).(–1) = 1 implica que 15 é resíduo quadrático módulo 53.
Gauss é considerado por muitos como um dos três maiores matemáticos da história, ao lado de Arquimedes e Newton. Aos dezessete anos de idade decidiu corrigir e completar a investigação que seus predecessores haviam desenvolvido em Aritmética. Gauss possuía um profundo interesse nas questões aritméticas e é conhecida a sua frase:
“A matemática é a rainha das ciências e a aritmética é a rainha da matemática.”
O trabalho de Gauss é uma fonte de inspiração pela sua criatividade e por um olhar profundo e moderno das questões matemáticas. Em seu livro “Disquisitiones Arithmeticae” ele estuda as equações do tipo xn º a (mod p). Esse é um problema difícil que ainda requer investigação. Entretanto, estudando a situação em que n = 2, descobriu e demonstrou a LRQ.
No período compreendido entre 1808 e 1832, Gauss continuou a investigar leis semelhantes para potências mais altas que quadrados, ou seja, relações entre p e q tal que tal que q fosse um resto cúbico de p, (x3 º q (mod p)), ou resíduo biquadrático (x4 º q(mod p)), e assim por diante. Durante essa investigação, Gauss fez algumas descobertas e percebeu que a investigação se tornava mais simples trabalhando sobre os números complexos m + ni, onde m e n são inteiros e i = (–1)1/2.
Gauss desenvolveu uma teoria de fatoração em primos para esses números complexos Z[i] conhecidos atualmente como Inteiros de Gauss ou Inteiros Gaussianos em homenagem a ele.
Gauss demonstrou que o conjunto dos inteiros gaussianos, munido das operações de adição e multiplicação, dá origem a uma estrutura denominada de domínio de integridade. Além disso, os inteiros gaussianos admitem uma decomposição em primos, essa decomposição é única a menos da ordem dos fatores exatamente como acontece com o conjunto dos números inteiros.
Gauss generalizou a idéia de número inteiro quando definiu o conjunto Z[i]. Ele descobriu que muito da antiga teoria de Euclides sobre fatoração de inteiros poderia ser transportada para o domínio Z[i] com conseqüências importantes para a Teoria dos Números. Entretanto, as questões de divisibilidade se tornam complexas nesse domínio. Observe que 5 é um número primo em Z, mas deixa de ser primo em Z[i]. De fato,
(1 + 2i).(1 – 2i) = 1 – 2i + 2i – 4i2 = 1 – 4.(–1) = 5.
Surge uma questão natural: quais são os números primos do domínio de integridade Z[i]?
Essa e outras questões relativas à aritmética dos inteiros de Gauss serão comentadas em nossa próxima coluna.